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Positivismo – o sintoma da doença nas artes marciais

Ouvi aqui há uns tempos um comentário de alguém que procurava defesa-pessoal e que dizia assim: “aquele professor tem muita rebanhogente, a sala cheia, por isso deve ser bom”.

Comentar esta frase é sempre difícil.

Mas o que ensina ele? …

Apraz-me começar por lembrar que vivemos numa altura do mundo em que a sociedade e as pessoas não têm a mesma constituição que tinham há 30 ou 40 anos atrás. As pessoas, em geral, (e isto é uma leitura totalmente empírica), sobretudo os jovens, estão hoje em dia mais focadas em “aprender a nadar sem ir à água”.

Dizia um amigo meu que o factor “dor” afasta muita gente das aulas. Eu discordo, acho que o que afasta não é o factor dor – é a capacidade de lidar com a dor. São coisas muito diferentes.medo

Se sabemos todos, (pela educação que queremos dar aos nossos filhos), que a vida é feita de dificuldades e que as mesmas não podem ser evitadas, mas sim resolvidas – então significa que querer aprender artes marciais sem contacto e dor é o mesmo que querer aprender a nadar sem ir à água; é completamente impossível.

Tal como na vida se quer que um individuo se reúna de capacidades que o fortaleçam e lhe permitam lutar contra as adversidades, assim é na aprendizagem das artes marciais – porque o combate é, podemos dizer, a adaptação constante a novas dificuldades; e o melhorar com a prática.

Desistir devido à dor ou ao medo da dor, é o mesmo que  não perceber que o insucesso é apenas um passo para o sucesso. Este é o factor do lado de muitos alunos.

“O início é difícil, mas tudo é difícil ao início.” M. Musashi

Do lado do treinador/instrutor/professor/mestre/grão-mestre entra um outro factor nesta equação: o factor económico.

O «business» das artes marciais trouxe consigo ao longo do século 20 um fenómeno curioso: para ter mais alunos (mais dinheiro), foi lucronecessário modificar os métodos de treino, de forma a ter menos ou nenhum contacto, pré-anúncio dos movimentos do atacante (controlo do confronto), mais espectacularidade (show), mais marketing agressivo (dizer mal do vizinho, é um dos exemplos mais
infelizes), menos ou nenhuma validação dos conteúdos e introdução de cintos e graduações como forma de recompensa.

Ou seja, remover os factores negativos e acentuar os positivos – isso atrai mais gente.

E por fim, do lado social entra um último e decisivo factor – que afecta quer aluno, quer instrutor: o factor Leilei

As Leis civis dos países mais desenvolvidos vão todas no sentido de proibição das armas e de fortes restrições à capacidade de luta de cada um. Foi mais ou menos por essa altura (segunda metade do séc. 19) que começou o uso do termo “defesa-pessoal”.

Resta-nos a defesa, diz a Lei. Sem armas, diz a Lei.

As Leis desportivas, por outro lado, obrigaram (e ainda pressionam nesse sentido) a criar desportos ou actividades desportivas de desportocombate. Aí apareceu um outro campo de prática – o desporto de combate – um prolongamento da arte marcial.

O cidadão desarmado, que precisa de se sentir seguro, tem então escancarado à sua frente dezenas de flyers, com soluções mágicas para todos estes problemas. O instrutor tem, por seu lado, a porta aberta à imaginação e à descoberta do produto que o aluno procura.

A maioria das aulas que se oferecem hoje em dia, tiram muito bem proveito de todos estes factores e, a juntar a tudo isso, um método apoiado naquilo que chamo de positivismo:

Tudo o que se treina na aula funciona perfeitamente e tudo aquilo foi testado antes por outros (por isso o aluno não precisa testar – basta acreditar na palavra do seu instrutor). Uma cura para a falta de confiança dos alunos e/ou uma forma de criar a ilusão da eficácia. Deixa de ser arte e passa a ser crença.

Porque, em geral (infelizmente), se treina para o positivismo, tudo tem sucesso (aparente) e sai bem à primeira, criando uma alegria e confiança instantâneas, (mas não permanente e crescente).

Prova disso são as «salas cheias».

O positivismo é por isso o sintoma, a consequência da doença nas AM. Não tem de ser assim (é a minha leitura).

As artes marciais (AM) são o que são. Treinar pelo prazer de aprender e melhorar as capacidades nessa arte. Definir bem o que se quer e os contextos em que se trabalha. Não abusar dos termos e validar o que se aprende e ensina. É esse o caminho.

Um carpinteiro valida-se pela capacidade de fazer cadeiras, por exemplo. A carpintaria, como um sistema capaz de produzir bons carpinteiros. O que é um bom carpinteiro? O que produz algo sólido com a sua arte.

Um artista marcial valida-se pela sua capacidade de lutar. Um sistema de AM e um instrutor pela sua capacidade de produzir bons lutadores. O que é um artista marcial? O que sabe lutar.

O facto de termos a maioria dos que nos procuram a querer aprender a lutar, sem lutar, significa que do lado dos alunos/clientes, temos (como treinadores/instrutores) um trabalho muito importante a fazer e que está no plano mental e psicológico dos nossos alunos – para isso é preciso formação e algum jeito.hsd221ngu2

Há de facto outros modelos de negócio, há de facto outros métodos de treino e há, de facto, forma de sermos mais coerentes no que vendemos aos alunos. O que
temos feito até aqui é repetir o que de errado foi feito para trás, sem percebermos que há outras maneiras e soluções. Refiro-me a métodos, estratégias e tácticas radicalmente diferentes das até aqui utilizadas. Refiro-me não só ao treino, mas sobretudo ao que está interligado com o treino e que tem nele uma influência esmagadora.

Não se esqueçam que prestamos um serviço e que ao vendê-lo temos uma grande responsabilidade.

Reflectir bem sobre isto.

Pedro Silva

Responsável-técnico FMA-P