+351 - 91 737 6884 infofmap@gmail.com

A falta de «inimigo»

Para começar e matar já uma questão que pode aparecer, digo o seguinte: na chamada “defesa-pessoal realista” a falta de confronto físico com um inimigo concreto cria um estado patogénico. Em que a doença se agiganta e em que o doente (sistema e praticantes) passa de “doente curável” a “doente terminal“!
Nas artes marciais e nos desportos de combate é (nem sempre) possível reverter a doença…
Pausa…
E comecemos lá então.
A partir de certa altura da curva de aprendizagem, “lutar”, “fazer sparring”, “rolar”, “ganhar” ou “ser o melhor” na sala de treino, com os amigos do costume, os colegas conhecidos, é  um jogo viciado.
É «combater em incesto»; coisa que, parecendo às vezes que não, leva a uma progressão limitada.
E se pensarmos que todos aprendem no mesmo local com o mesmo professor… Pior ainda!  Todos conhecem, a uma certa altura, o jogo de todos.
Mas isso é errado?
Claro que não! É necessário e imprescindível!
A minha questão vai, contudo, mais além.
Se olharmos para as guerras do mundo, percebemos que cada força militar, fosse ela grande ou pequena, evoluía constantemente. E evoluía porque aprendia.
E aprendia com quem?…
Com o inimigo. Nada mais!
Se aprendesse bem e depressa, fazia a diferença. Se não tivesse inimigos estagnava… ou mesmo degenerava.
Isto não é assim tão espantoso, pois o mesmo se passa em jogos colectivos (futebol, etc) e em jogos individuais (boxe, xadrez, etc). Aprende-se jogando.
Ora nas artes marciais, no contexto da vida civil e moderna, o «inimigo» (termo forçado) não pode estar na “rua” e não pode ser “indefinido”. Ele está no único contexto possível – o do duelo / desportivo – e parece-me lógico que se tenha de ir ao seu encontro.
É disso que se trata quando se faz sparring e duelo, seja ele competitivo ou não: ir ao encontro do «inimigo».
Mas para quê?
Para que se saia do conforto da sala de treino e que se vá conhecer as possibilidades e limites do sistema que se pratica. Ou, talvez mais correcto ainda: que cada um se vá auto-conhecer como lutador – intérprete de um sistema ou estilo.
Digo, por experiência, que é sempre um prazer medir as capacidades pessoais. Requer alguma coragem e amor-próprio.
Do outro lado estar alguém que não sabemos como se mexe, como joga e que intenção tem?
O medo, a adrenalina, a superação pessoal fazem parte….
O que se aprende sobre si mesmo !!!
Traz muitos benefícios ao conhecimento, ao questionamento constante e ao crescimento (do sujeito e do seu sistema).
Consegue ver estas duas dimensões? …
É que muitas vezes elas andam baralhadas: o sistema e o sujeito que o interpreta e põe em jogo.
O sistema é a escrita e o sujeito que a usa é o escritor. O livro é cada uma das suas obras.

sistemas de luta correctos, mas isso não quer dizer que estejam estagnados. Funcionam até aparecer um problema que se repete. Aí têm de recolher, lamber feridas e repensar em frente.

Mas e o sujeito?
É similar no sujeito, no indivíduo. Aí a oscilação é maior, pois ele é humano e intérprete do sistema.
O sistema está certo se foi testado e validado inúmeras vezes – como um experiência científica que foi repetida vezes suficientes, até ser considerada “Lei científica”.
O sujeito pode estar errado na interpretação de um sistema correcto. Ou seja, ele pode estar treinado num sistema funcional, mas não ser capaz de o colocar em prática nas «experiências» que vai fazendo.
Ele pode ser um mau intérprete porque treina pouco.
Ele pode ser um mau intérprete porque não tem «inimigos».
Ele pode ser um mau intérpreteporque o antagonista («inimigo») lhe coloca problemas que não espera.
Pode também ter tido “um dia menos bom”, uma falha, uma desconcentração – porque não é máquina, é humano.
E há ainda aqueles que, ao contrário, superam os sistemas.
Possuem características pessoais (dons) que os tornam tão bons que até fazem o sistema melhor do que aquilo que é na verdade – são os “Ronaldo”, os “Michael Jordan” e os “Tyson” desta vida… Os “lucky bastards”. São os momentos de “magia”, em que o “homem supera a arte”.
Mas… não esquecer que todos eles trabalharam imenso. O talento estava lá, mas sem trabalho pessoal e sem SISTEMA, não existiam como os conhecemos.
Mas, finalmente a pergunta que é difícil responder: Porque é que muitos (a maioria dos que treinam) não se testam ou validam com o sistema que aprendem?
Há muitas razões… se calhar cada sujeito tem uma.
Além do problema da “falta de inimigo” (fácil de resolver), eu creio que o factor principal que leva muitos atletas de artes marciais e mesmo de desportos de combate a não o fazerem é o factor MEDO.
Não é fácil reconhecer que se tem medo.
Tem-se até medo de se dizer que se tem medo… como se fosse uma falha que é preciso esconder.
Cus D`Amato, famoso treinador de boxe, disse o seguinte:

“Eu muitas vezes digo a eles [alunos] que mesmo que o medo seja uma coisa detestável e embaraçante… Ele ainda é seu amigo, porque, a qualquer momento ele salva a sua vida; talvez inúmeras vezes ao dia. Não importa o quanto ele é detestável, você deve olhar para ele como um amigo, e é isso o que o medo é… Já que a natureza nos deu o medo para nos ajudar a sobreviver, nós não podemos olhar para ele como inimigo. Apenas pense em quantas vezes num dia uma pessoa poderia morrer se não tivesse medo. Ela andaria na frente dos carros, ela morreria inúmeras vezes no dia. Medo é um mecanismo de protecção… Conversando com o lutador sobre o medo eu corto o tempo de aprendizagem em até metade do tempo, às vezes até mais, dependendo do indivíduo.”

O medo é algo natural e necessário à sobrevivência da espécie. Desperta mecanismos complexos na bio-psicologia do individuo. Afecta comportamentos e a aprendizagem de determinada maneira, de pessoa para pessoa.
Não é um tema fácil e deveria ser bastante estudado por todos os que são praticantes, mas sobre tudo treinadores!
É algo bastante estudado pela ciência, não é algo que se possa opinar.
Bom, poderia dizer muito mais, mas em tom de finalização do artigo, recomendo a não esquecer que:
Nunca se sabe quem está do outro lado” e que “mesmo o maior campeão tem um dia menos bom; uma falha qualquer que pode ser explorada”.
Não se trata de como parece, mas sim de como funciona para si e de como se sente !
“Ars Longa, vita brevis”. “A arte é eterna, mas a vida é breve”.
Mas… saia do conforto!
Procure enfrentar os seus medos!
Desafie-se !
Descubra prazer nisso!
Claro, com segurança e, obrigatoriamente, com um professor / sistema correcto !
Ah e… com uma regra:
No fim somos amigos.
Isso é o mais importante!
Bons treinos
Pedro Silva
FMA-P